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 [Literatura em video] Mia Couto - Escritor de Mocambique

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MensagemAssunto: [Literatura em video] Mia Couto - Escritor de Mocambique   [Literatura em video]  Mia Couto - Escritor de Mocambique Icon_minitime6/11/2011, 22:48







Murar o medo – Mia Couto


O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança
em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e
demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem, servindo
como agentes da segurança privada das almas. Nem sempre os que me
protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso
acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos.
Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi
praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os
fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano
de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus
anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais
protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha
língua, da minha cultura, do meu território.

O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando
deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de
viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais
muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há
neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente
ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo
tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam
crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do
país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o
fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses
abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são
governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático
avô que não deixou descendência.

O preço dessa construção [narrativa] de terror foi, no entanto,
trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo
cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança
mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais
sanguinários de que há memória. A mais grave herança dessa longa
intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam
a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.

A Guerra-Fria esfriou mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou,
inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a
Ocidente. E porque se trata de novas entidades demoníacas não bastam os
seculares meios de governação… Precisamos de intervenção com
legitimidade divina… O que era ideologia passou a ser crença, o que era
política tornou-se religião, o que era religião passou a ser
estratégia de poder.

Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir
inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço
requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em
segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para
superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais
prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentar as
ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a
suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho
verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho
começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e do outro
lado, aprendemos a chamar de “eles”.

Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a
demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a
realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é
imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente
situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades
individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a
racionalidade deve ser suspensa.

Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas
[incomodas] como, por exemplo, estas: porque motivo a crise financeira
não atingiu a indústria de armamento? Porque motivo se gastou, apenas o
ano passado, um trilião e meio de dólares com armamento militar? Porque
razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os
que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaffi? Porque motivo se
realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial –
teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de
destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo,
sem que sejam precisos pretextos de guerra. Essa arma chama-se fome. Em
pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo
para superar a fome mundial seria uma fracção muito pequena do que se
gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de
insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em
cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual
durante o seu tempo de vida… A verdade é que… pesa uma condenação
antecipada pelo simples facto de serem mulheres.

A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta,
fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares
sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de
discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada
a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que
fazer prova de coerência nem de ética nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do
espaço seja uma muralha. A chamada Grande Muralha foi erguida para
proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou
conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses
construindo a Muralha do que vítimas das invasões do Norte. Diz-se que
alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria
construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora
de quanto o medo nos pode aprisionar.

Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas
não há hoje no mundo muro que separe os que têm medo dos que não têm
medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do
norte, do ocidente e do oriente… Citarei Eduardo Galeano acerca disso
que é o medo global:

“Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham
têm medo de nunca encontrar trabalho. Quem não têm medo da fome, têm
medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo
da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.”

E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.
Mia Couto
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